Aposentado com direito a prisão domiciliar morre na cadeia



Aposentado com direito a prisão domiciliar morre na cadeia
Pouco antes das 18 horas do dia 16 de novembro, José Coelho Bitencort, de 81 anos, procurou o revólver calibre 38 que nunca tinha usado, se dirigiu ao portão de casa onde morou por 40 anos e atirou seis vezes em direção a uma aglomeração de vizinhos na Rua Conselheiros Elias de Carvalho, no Jabaquara, zona sul da capital.
O barulho fez Cássio Luiz da Silva, de 55 anos, pensar no estouro de bombinha de festa junina, até que sentiu uma ardência nas costas. Ouviu outros dois estampidos e se levantou apenas para olhar a mulher, Sandra Isabel da Silva, de 54 anos, caída no asfalto. Ele se feriu levemente. Ela morreu.
Preso em flagrante no mesmo dia, Bitencort afirmou ter sido tomado por um acesso incontrolável de raiva. Sua intenção, como declarou aos policiais, era apenas assustar a família de sua vizinha, que há 16 anos o incomodava com barulho na frente de casa. Sem antecedentes criminais e com mais de 80 anos, ele poderia cumprir pena em regime domiciliar, se a Justiça autorizasse. E foi o que ela fez, no dia 28 de novembro. Mas era tarde. Bitencort já havia morrido fazia quatro dias, em uma cela no Centro de Detenção Provisória II de Guarulhos, de broncopneumonia.
O advogado de Bitencort, Isaac Minichillo, reclamou da morosidade. “Segundo o Estatuto do Idoso, causas relativas a idosos têm preferência e prioridade sobre quaisquer outras. Nove dias para decidir um pedido de prisão domiciliar de um idoso recolhido em estabelecimento inadequado à sua condição não parece razoável”, disse.
O Tribunal de Justiça, porém, considerou que os prazos foram cumpridos, uma vez que o processo passou por vários trâmites. Um dia após o crime, a prisão em flagrante foi convertida em preventiva. No dia 19, a defesa pediu revogação da preventiva para a domiciliar e, como Bitencort não poderia voltar para casa por segurança, Minichillo ofereceu abrigá-lo em outro local. Mas veio o feriado de 20 de novembro, uma quinta-feira, e o promotor não foi localizado até a semana seguinte para dar o parecer. Quando a decisão chegou ao juiz, no dia 28, ele já estava morto.
Muro. Bitencort era uma pessoa reservada e não incomodava ninguém, segundo Gerson Rhein, de 40 anos, seu filho de criação. Metalúrgico aposentado desde 1987, ele morava sozinho e nunca se casou. Natural de Caeté, em Minas, se mudou para São Paulo depois de brigar com os pais, há 50 anos. Quando familiares ficaram sabendo do crime, pela televisão, tentaram entrar em contato, o que emocionou Bitencort.
Cecília da Silva, de 78 anos, mora exatamente na casa ao lado da de Bitencort e conviveu com ele por 40 anos. Ela é mãe de Sandra Isabel da Silva, que morreu com o tiro. Cecília definiu o vizinho como frio e rancoroso. A relação entre os dois era respeitosa, mas distante. “O que nos intriga é que não sabemos o motivo pelo qual ele fez isso. A vida inteira ele viu a minha família aqui, com cadeiras na rua, tomando sol nos fins de tarde de domingo. Não houve desavença. Ele não falou nada, só atirou”, disse.
Bitencort chegou a construir um muro alto para evitar contato com os vizinhos. Para uma das filhas de Isabel, ele era, no fundo, solitário: “Minha mãe era uma pessoa sem rancor. Se tivesse saído viva dessa, não ia ter mágoa nem desejar o mal”.

O Estadão

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