A cada três dias, um professor é ameaçado dentro de escola no Rio de Janeiro



Ameaçada e agredida, professora de inglês tem medo: 'As crianças diziam que iam pedir aos traficantes que me matassem' Foto: PABLO JACOB / Agência O Globo
Rafael Soares

A professora de inglês havia acabado de passar no concurso para dar aulas na rede municipal do Rio. Com 25 anos, ela foi trabalhar numa escola dentro de uma favela na Zona Norte da cidade, sem imaginar que iria enfrentar um cotidiano hostil. Mas não demorou muito a descobrir. Um dia, repreendeu uma aluna que demonstrava um comportamento agitado na sala de aula, e a menina, de apenas 10 anos, a ameaçou apontando uma tesoura.

Além das ameaças e das agressões verbais, que se revelariam corriqueiras, a jovem ainda sentiria na pele a violência ao ter a mão esmagada na porta de um armário por outro aluno, o que a levou a ser socorrida em um hospital. Dois anos depois de dar início à carreira cheia de sonhos, a professora viu seu otimismo e esperança vencidos por uma licença psiquiátrica.


— Não tinha experiência em sala de aula, muito menos em escola pública. Logo no início, precisei lidar com crianças que não aceitavam ser repreendidas. Diziam que iam pedir aos traficantes que me matassem — lembra a professora, que hoje tem 33 anos e, com medo, pede para não ser identificada.

Os episódios descritos pela profissional de educação não são raros. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), obtidos pelo EXTRA via Lei de Acesso à Informação, a cada três dias um professor denuncia ter sido ameaçado dentro de uma escola no Rio. De 2014 a 2017, 624 ameaças foram registradas por professores na Polícia Civil. Todas foram feitas em unidades de ensino no estado.





A licença da professora de inglês durou três meses. Após se recuperar, ela foi realocada pela Secretaria municipal de Educação em outra escola, no Complexo da Maré, onde não teve problemas.

— Com o tempo, percebi que o ambiente violento nas escolas tem muito a ver com a ausência da família da criança no ambiente escolar. Antes, isso não acontecia. Nessa nova escola, eu vejo os pais mais inseridos na vida acadêmica dos filhos, e o diálogo com o professor é melhor — avalia.

Professora idosa acuada por pai

Com base nos dados, é possível traçar um perfil do tipo de agressões sofridas por professores dentro das escolas do Rio. O levantamento revela que os alunos são responsáveis por um quarto das ocorrências. A maior parte das vítimas é formada por professoras: são mulheres que procuram a polícia para relatar terem sofrido alguma violência em três quartos dos casos. Metade das ocorrências são no turno da manhã, entre 6h e 12h. Em apenas 5% das queixas as vítimas acusam colegas de profissão.

Apesar da média de idade das vítimas ser 31 anos, profissionais experientes também são alvo de ameaças. Aos 67 anos, outra professora da rede municipal entrevistada pelo EXTRA relatou ter sido intimidada, há dois meses. E, desta vez, não foi dentro da sala de aula, mas através de um recado dado pelo pai de uma estudante de 10 anos.

— Na minha turma, tinha uma aluna mais velha, que já tinha repetido de ano, e atrapalhava muito as aulas. Um dia, a repreendi de forma um pouco mais dura e, depois da aula, nos sentamos para conversar. Tudo correu bem. Mas, no dia seguinte, fiquei sabendo que o pai dela tinha ido à escola para mandar um recado pela diretora. Ele disse que eu deveria tomar cuidado quando fosse sozinha à escola — conta a professora, que dá aula numa escola municipal na Zona Norte e, desde que soube da ameça, passou a fazer o trajeto até escola, sempre acompanhada por outro professor da unidade.

A área do 3º BPM (Méier), que engloba 20 bairros da Zona Norte e favelas como Complexo do Lins, Jacarezinho e Manguinhos, é a que mais concentra registros de ameaça a professores. A região teve 38 casos registrados em delegacias da área, 6% do total do estado. O grosso das queixas está na capital: as escolas municipais tiveram, nos quatro anos do levantamento, 227 casos. Isoladamente, no entanto, a delegacia que mais contabilizou denúncias fica na Baixada Fluminense: a 59ª DP (Duque de Caxias) abriu investigação para 17 ameaças a professores.

Morador da Baixada, o professor de geografia Caio Andrade, de 30 anos, afirma que teve que “abrir mão do emprego pela saúde”. Em 2011, ele passou no concurso da rede municipal de Mesquita, cidade de 168 mil habitantes da região, e começou a dar aulas para jovens e adultos, à noite. Em 2013, durante o período de provas, um aluno, de 17 anos, ao cruzar com o professor no corredor da unidade, disse ele se arrependeria se lhe desse uma nota ruim.

Após o episódio, Andrade desenvolveu transtorno de ansiedade. A caminho da escola, na semana seguinte à ameaça, teve uma crise de pânico dentro do carro e sequer conseguiu chegar ao colégio. Após seis meses de licença médica, pediu demissão:

— Aquela história afetou profundamente a minha saúde. Comecei a ter crises de pânico e apresentei um quadro de hipertensão antes de chegar aos 30 anos. Não vi outra alternativa, a não ser me demitir. Aquele sistema é feito para dar errado. Quando comecei a trabalhar em Mesquita, as aulas para jovens e adultos eram num Ciep, com uma boa estrutura. Depois de um ano, todas as turmas foram transferidas para outro colégio, bem menor, sem estrutura. As turmas eram superlotadas, não tinha ventilação. Não culpo o jovem pelo que aconteceu. O ambiente estimulava esse tipo de atitude.

Atualmente, Andrade integra a direção do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (Sepe). Uma de suas funções na Secretaria de Saúde e Direitos Humanos da entidade é reunir relatos de professores que viveram experiências parecidas com a dele e cobrar providências do poder público.

— Também vamos às escolas, e conversamos com a direção para entender a causa do problema — explica Andrade.

Ameaças fecharam escola por um dia

Nos últimos anos, houve casos de ameaças seguidos de agressões, incluindo alunos que usaram facas e armas de fogo dentro das escolas. Em maio de 2014, na Escola Municipal República do Líbano, em Vigário Geral, um aluno de 15 anos sacou um revólver, apontou para o rosto de um professor de história e apertou o gatilho quatro vezes. Como a arma não disparou, o professor lutou com o agressor, mas ele consegui fugir. Já em agosto do ano passado, a Escola Municipal Thomas Mann, no Cachambi, chegou a fechar um dia inteiro porque um aluno de 16 anos, após ser advertido durante a aula, tentou agredir o professor e toda a equipe do colégio. Para contê-lo, foi preciso chamar a Polícia Militar, que o levou imobilizado para a delegacia. No dia seguinte, com os professores com medo, a direção não abriu a escola.

Para o sociólogo Cesar Callegari, membro do Conselho Nacional de Educação, órgão de assessoramento do Ministério da Educação, a única maneira de evitar ou reverter esse tipo de situação é aproximar a escola da comunidade ao seu redor.

— Os dados refletem uma situação de vulnerabilidade nas escolas, que acabam tendo que resolver problemas que os jovens trazem de fora, de seu ambiente familiar, do contexto em que estão inseridos. A escola não vai resolver esses problemas, e isso acaba transbordando para situações de violência envolvendo professores e alunos. A solução mais eficaz é traçar uma estratégia de aproximação real da escola com a comunidade no seu entorno, fortalecendo vínculos com as famílias, facilitando o diálogo. Só assim é possível diminuir a violência no ambiente escolar — defende Callegari.

A Secretaria municipal de Educação (SME), em nota, informou que, quando é percebido algum tipo de comportamento que possa incidir em eventos de violência, a própria escola faz a intermediação de uma ação preventiva. Apesar dos casos relatados na reportagem, a pasta alega que, em geral, não há violência nas escolas. “A violência que atinge o entorno de parte de nossas unidades é externa, e, portanto, uma questão de segurança pública”, diz a nota.

Já a Secretaria estadual de Educação afirmou, também por meio de nota, que “em eventuais casos relacionados ao tema, as escolas são orientadas a imediatamente entrar em contato com as famílias dos alunos, o Conselho Tutelar, a Vara da Infância, da Juventude e do Idoso e com a Delegacia de Polícia da região”. As duas secretarias de Educação informaram que não contabilizam dados sobre professores afastados do trabalho em decorrência de ameaças, agressões ou algum tipo de violência.

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